Filosofia Política no De Regno de Tomás de Aquino(II): os regimes.
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As considerações feitas por Tomás de Aquino após considerar a sociabilidade humana giram em torno dos regimes. Fica claro de início que o modo do homem viver em sociedade é, em certo sentido, próprio; se associa, como os animais, para fins externos à essa associação, mas diferente dos animais esta associação humana também possui seus fins internos: o relacionar-se com outro constitui um bem e não apenas um meio para a sobrevivência. O que torna o modo de associação entre os homens distinto e mais elevado que o dos animais não dotados de razão.
Percebe-se. entretanto, que sendo muitos os homens, também muitos e distintos são os fins em vista dos quais agem. E porque não poderia manter-se congruente uma sociedade na qual os fins dos particulares não estão harmonizados uns com os outros e ordenados para um fim(bem) comum, segue-se a conclusão de que é necessário algo regitivo para que a comunidade mantenha-se congruente. O bem da multidão (bonum multitudinis) encontra-se aqui como a justificativa do regime,e o fim ao qual este deve buscar.
Segundo esta perspectiva, fica claro de início a impossibilidade de reduzir a função do regime( ou, digamos, autoridade) à função de punir o mal e premiar o bem; algo regitivo seria necessário ainda que não se observasse males feitos por particulares na sociedade. Isto torna claro que são duas as principais funções do regime, todas exercidas em vista do bonum multitudinis, do bem comum: (i) a coordenação dos fins dos particulares e harmonização destes e (ii) a limitação e obstaculização a estes fins quando atentarem a bens objetivos de outros ou ao bem objetivo da comunidade. A impossibilidade de constituir e manter uma sociedade sem estas duas condições de coordenação e limitação manifesta a razoabilidade e a necessidade de que exista algo regitivo que torne estas duas condições efetivas.
Seguindo-se a esta conclusão, outra constatação é feita por Santo Tomás no capítulo 2 da obra: múltiplos regimes e domínios existem. Estes regimes podem ser discernidos segundo dois critérios : (i) segundo busca ou não o bem comum da multidão ou o bem privado de quem rege; segundo (ii) a quantidade dos que regem. Partindo-se do primeiro critério, pode-se abrir uma classificação mais geral, sendo possível que o regime seja ou justo ou injusto, segundo busque o bem comum da multidão ou o bem particular do regente; do segundo critério, por sua vez, há o discernimento de três categorias de regime, que podem ser, por sua vez, discernidos entre justos ou injustos, o que retoma a clássica distinção de regimes já feita outrora pelos gregos.
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Mapa mental que fiz para ilustrar a distinção entre os regimes. |
Definindo brevemente cada regime, e fazendo algumas observações, temos o seguinte:
- Reino/monarquia: é o regime no qual um só governa tendo em vista o bem comum da multidão.
- Aristocracia: é o regime no qual alguns dentre os mais notáveis governa tendo em vista o bem comum da multidão.
- Politia: é o regime no qual muitos governam em vista do bem comum da multidão.
- Tirania: regime no qual um só governa tendo em vista o bem particular próprio.
- Oligarquia: regime no qual poucos governam tendo em vista o benefício próprio do mesmo grupo que governa.
- Democracia: regime no qual muitos governam tendo em vista somente o bem privado daqueles que ora estão a governar.
É preciso fazer algumas observações aqui: primeira, é a de que, apesar de seguir a divisão clássica de regimes, Tomás de Aquino ao tratar dos regimes corrompidos denomina o governo de muitos em vista do bem privado de democracia( democratia). Com relação a isto, é preciso ter em vista que ,apesar da terminologia, o tipo de regime ao qual Aquino quer se referir pode ser melhor compreendido se chamado de demagogia, como o foi pela filosofia aristotélica. Indicaria, assim, a forma corrompida do governo de muitos, a qual se assemelharia a uma tirania da maioria, na qual a maioria governa estabelecendo as leis não segundo a justiça, mas segundo os benefícios particulares que esta maioria no poder pode alcançar para si. Esta distinção é necessária devido ao comum uso que o termo democracia quer indicar nos dias atuais, se bem que muitas vezes tem-se visto o regime se orientar em direção à demagogia com grande facilidade..; segunda, ao tratar, por exemplo, da aristocracia, o critério para distinguir os notáveis não será, como poderia ser pensado, as vantagens econômicas ou sociais, por exemplo. Estas vantagens não fornecem critério adequado pois não são capazes de avaliar, por si mesmas, a justiça com a qual um homem age ou deixa de agir. As virtudes, por sua vez, podem fornecer critério seguro para identificar os notáveis que haverão de governar neste segundo regime, uma vez que estas são condição necessária, apesar de não suficiente, para que um regime alcance reta e eficazmente o fim para o qual foi estabelecido.
Feita a distinção de regimes, ainda mais uma coisa é preciso considerar: a hierarquia existente entre os regimes. Para Santo Tomás de Aquino, assim como dentre os regimes justos há um mais excelente, dentre os injustos também há um que é péssimo; o excelente é identificado na monarquia ou reino, o regime onde um é o que governa em vista do bem comum, enquanto o péssimo é, simetricamente, identificado na tirania. Excelente ou péssimo um regime será se conseguir alcançar eficazmente o fim para o qual foi estabelecido. O argumento que Aquino fornece nesta obra em favor da monarquia como regime excelente pode ser resumido no seguinte: o fim da intenção de qualquer regente deve ser ordenar-se ao bem daquele que aceitou reger; ora, o bem de uma multidão consorciada maximamente deve tender à procura da unidade da paz. Quanto mais eficaz for um regime para alcançar a paz, mais será útil, i.e., mais conduzirá melhor ao fim. Manifesto é, porém, que pode alcançar melhor a unidade da paz o que é per se um do que muitos. Mais útil é ,portanto, o regime de um que o de muitos.
Aqui, o argumento de Tomás pode ser um pouco incômodo. Parece, à primeira vista, que ele toma como evidente algo que não o é tanto assim, ou seja, como evidente que o governo de um pode alcançar melhor a paz do que o regime de muitos. Tentaria oferecer uma superação desta que me pareceu uma insuficiência de exemplos e desenvolvimento no argumento de Tomás, mas me parece que melhor será se apenas me limitar a tentar intuir o que pensara este gigante ao desenvolver este argumento. O que primeiro pode servir para esclarecer é considerar a razão da necessidade de algo regitivo, enunciada por Tomás no fim do capítulo 1. A multiplicidade de fins buscados pelos homens, bem como a multiplicidade de modos pelos quais os homens buscam um mesmo fim/bem, torna necessário que exista algo que possa coordenar estes fins nos justos limites. Esta multiplicidade de fins e de modos de alcançar o fim, entretanto, não se encontra unicamente na multidão regida, mas se encontra também naqueles que regem. A tarefa de coordenação teria, segundo este raciocínio, menos obstáculos caso as divergências sobre os modos de alcançar o fim fossem abstraídas e o modo fosse estabelecido por um único regente. Assim, seria mais útil que fosse só um a reger, pois assim alcançaria-se mais eficazmente o fim, o bem da comunidade. Com relação à tirania segue-se o mesmo raciocínio: há mais eficácia em alcançar o fim quando é o regime de um, ainda quando este fim não seja o bem da comunidade, mas o bem privado daquele que rege. Quanto mais pessoas à frente do regime, menos eficaz este se torna, para bem ou para mal.
Embora tudo o que acima está escrito esteja enunciado no De Regno, é preciso também considerar a preferência que Tomás de Aquino da, em outra parte(ST, I-II, Q.105, a.1), ao regime misto. Esta preferência é defendida sob duas autoridades, o que é comum na obra do Aquinate: o Filósofo e as Escrituras Sagradas. Seguindo estas duas autoridades, Tomás irá afirmar que existem duas condições para a boa ordenação dos principes numa nação, e estas são, nas palavras de Santo Tomás:
- "[...] que todos tenham alguma parte no principado: com efeito, por meio disso se conserva a paz do povo, e todos amam e custodiam tal ordenação, como se diz no livro 3 da Política."
- "Outra, é aquilo a que se atende segundo a espécie de regime, ou de ordenação dos principados".
Quanto à primeira condição, esta ligada a uma certa harmonia e reciprocidade entre o que governa e o que é governado, de maneira que os governados participam da ordenação social e, por isso, a amam e por ela zelam de modo especial.
A segunda, por sua vez, diz respeito à ordenação dos regimes segundo o grau de perfeição de cada um, segundo já pontuamos acima. É o que é chamado, em outros lugares, de ordo perfectionis, segundo a qual o mais imperfeito se ordena ao mais perfeito e tem por este sua virtude elevada. Nessa ordem, o governo de muitos(politia) seria aperfeiçoado pelo governo dos notáveis(aristocracia) e este é aperfeiçoado pelo regime de um(reino/monarquia).
A melhor explicação, entretanto, pode ser feita nas palavras do próprio Santo Tomás, e finalizam este texto:
" Por isso, a melhor ordenação dos principes se da numa cidade ou num reino onde um é posto segundo a virtude para presidir a todos; e sob ele estão alguns que participam do governo segundo a virtude; e todavia este principado pertence a todos, que porque podem ser eleitos dentre todos, quer porque também podem ser eleitos por todos. Tal é, com efeito, a politia ótima, bem mesclada de reino, enquanto um preside; e de aristocracia, enquanto muitos participam do governo segundo a virtude; e de democracia, isto é, o poder do povo, enquanto os principes podem ser eleitos dentre os populares, e ao povo pertence a eleição dos principes."(ST, I-II, Q.105, a.1.)
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