Teoria Analítica do Direito: uma introdução( parte 02).

Ainda na série de textos sobre teoria analítica do Direito, tomando como base o artigo de Robert Summers denominado "The new analytical jurists", passo agora a expor os pontos em que a metodologia dos chamados "novos teóricos analíticos" se distingue daqueles mais antigos. Ao invés de faze-lo positivamente, isto é, descrevendo as características metodológicas que particularizam estes teóricos, sigo o plano de Robert Summers para descreve-las negativamente, isto é, apresentando as fontes de alguns erros metodológicos destes autores. Verá o leitor que o característico dos novos analíticos não é senão a tentativa de corrigir estas fontes de erro.

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H.L.A. Hart, um dos maiores expoentes da teoria analítica no século XX.


Seis são estas fontes, e sua correção será o objeto que tornará mais fina, mais precisa metodologicamente a investigação dos novos teóricos analíticos. São elas: (1) o desejo e a tendência em converter questões conceituais em questões de fato; (2) o espírito de "disputa"(the urge to ´grind axes´),[ver nota {1}] gerador de confusões entre suas teorias políticas e sua jurisprudence; (3) a influência de modelos desviados; (4) uma tendência reducionista; (5) tendência à um essencialismo exagerado e, por fim, (6) o mal-uso da definição genus per diferentiam, isto é, da definição mediante gênero mais diferença específica.

A primeira questão pode ser ilustrada com clareza no confronto que H.L.A. Hart estabelece com as teses de John Austin. Há, neste debate, um paradigmático exemplo das distinções entre os antigos analíticos e os novos. Para o que nos interessa, entretanto, basta a apreciação de uma das críticas feitas por Hart à descrição austiniana do Direito como "ordens com base em ameaça", estabelecidas em uma relação vertical onde no topo está um soberano que é habitualmente obedecido e a ninguém obedece e na base está um súdito que obedece habitualmente aos comandos dados pelo soberano. A caracterização que Austin faz do Direito como baseado em ordens tem uma consequência importante: os demais conceitos - não todos - ligados à noção de Direito austiniana serão formulados e apreciados a partir da chave "imperativista", o que significa que será a ordem do soberano e sua imperatividade que fornecerão o prisma a partir do qual alguns conceitos serão interpretados, e dentre eles, o conceito de obrigação. Numa leitura primária ( pois que há aqueles que desenvolveram o argumento a fim de torná-lo mais plausível), daí se seguiria que a resposta para a pergunta "por que tenho eu a obrigação de obedecer a isto?" teria mais ou menos a seguinte formulação: "porque assim foi ordenado pelo soberano". Esta concepção da obrigação, porém, levanta alguns problemas e ilustra a já descrita redução do conceitual ao factual, ou, no caso mais específico, do normativo ao factual.

O problema desta concepção de obrigação reside no seguinte: passa-se despercebida a distinção de nível existente entre dois tipos de questões: (a) o nível conceitual e o nível factual e (b) o nível normativo e o nível factual. Como, para os propósitos deste texto, somente nos interessa o primeiro tipo de questões (a), vamos à ele. Dizer que uma determinada descrição confunde o nível conceitual e o nível factual significa dizer que ela não se aprecia devidamente a distinção existente entre as notas essenciais que fornecem a "forma" a um fenômeno ou prática social( o que pertence específicamente à jurisprudence) e uma instanciação particular deste mesmo fenômeno(o quue pertence primáriamente à uma análise de tipo sociológico). Em outras palavras, que haja normas/leis/regras dentro daquele fenômeno a que chamamos de "Direito" que se caracterizam por sua estrutura imperativa e coercitiva( o que a análise factual e empírica nos leva a constatar facilmente), não se segue que a imperatividade e a coercitividade sejam notas essenciais do Direito, isto é, notas sem as quais o Direito não poderia mais ser chamado de Direito. Prova do antecedente(Hart): existem regras que prescindem do caráter imperativo e coercitivo e são chamadas, adequadamente, de Direito. Logo, a imperatividade e a coercitividade não são características "conceituais" do Direito, essenciais ao Direito, embora seja empiricamente certo que se encontram, de fato, em todos ou quase todos os sistemas a que chamamos de Direito. Concluamos: a presença da coercitividade e da imperatividade, embora universal, não é essencial no Direito. A fonte do erro de Austin aqui é claríssima: a seu desejo, a sua inclinação à reduzir para o nível conceitual( que trata daquilo que é essencial) o que era próprio do nível factual( isto é, aquilo que factualmente existe/ pode existir universalmente, mas não é conditio sine qua non). Isto foi percebido por Hart. Desde então, a distanciação desta fonte de erro confere precisão analítica superior aos teóricos mais contemporâneos.

O segundo problema, ou fonte de erro, é aquele que Summers chama de "the urge to grind axes"(ver nota [1]), isto é, a tendencia de, por questões de preferências políticas ou outras, confundir questões conceituais com questões de valor, questões avaliativas, levando a um certa confusão nos debates entre estes teóricos antigos: pensavam debater questões conceituais, mas a polêmica se tornava intensa em razão da confusão entre as questões conceituais e questões atinentes à outras disciplinas, como filosofia política e moral.

Aqui não precisamos entrar na questão suscitada em tempos mais recentes sobre se é possível que uma análise conceitual prescinda totalmente de caráter avaliativo, isto é, se é possível uma descrição "livre de valores"(2). Mas é importante que se tenha claro como a coerência lógica, de caráter descritivo, se sobrepõe e se distingue claramente de questões valorativas, deontológicas nos autores da nova tradição analítica do direito. Não que estas sejam desprezadas: um grande discípulo de Hart, Joseph Raz, possui uma profundíssima filosofia política, que se caracteriza por um perfeccionismo moral de orientação liberal; mas estas questões de valor são diferenciadas claramente das questões conceituais, de modo que, por exemplo, Raz pode ao mesmo tempo dizer, mediante sua filosofia política e moral, que uma lei injusta não deve ser obedecida, embora conferindo o caráter jurídico à estas leis, uma vez que a injustiça nelas presente nada repugnaria (na teoria de Raz) a ratio legis, a essência da lei. Não haveria, assim, por exemplo, contradição lógica entre o substantivo "lei" e o adjetivo "injusta" no termo "Lei injusta", uma vez que os critérios pelos quais se identifica um fenômeno como jurídico são distintos dos critérios pelos quais se identifica um fenômeno como sendo justo ou injusto; um é de ordem jurídica, outro de ordem moral; um pertence à jurisprudence, outro à filosofia moral, disciplinas que, embora relacionadas, são distintas. Estas distinções são as que buscam guardar estes novos teóricos analíticos, a fim de não cair em erros como o de Hobbes que, tentando descrever as notas essenciais do direito, acabou, por força das circunstancias em que vivia, imiscuindo sua análise em apologias políticas mais ou menos veladas(3).

A terceira fonte pode ser explicada com mais brevidade. Ela consiste na adoção de modelos irrelevantes ou mesmo equivocados como método para analisar o Direito. É a tendência, muito presente nos antigos autores( embora não totalmente ausente em alguns destes novos teóricos), de adotar esquemas e modelos particulares e, a partir daí, tentar adequar a estes modelos os multifacetados fenômenos jurídicos. Novamente aqui podemos retornar à Austin( nada pessoal tenho eu contra ele, mas parecem o ter Hart e Summers, e por isso não posso evitar me referir novamente à ele). Um dos modelos a partir dos quais Austin viera a construir sua teoria foi o modelo soberano-súdito, segundo o qual a melhor descrição do direito seria aquela que enfatizasse a estrutura vertical onde há um que manda e um que obedece; toda a posterior apreciação das demais normas jurídicas que não se encaixassem nessa estrutura à primeira vista, haveriam de ser "forçadas" para "caber" no modelo.

Ora, há nisto uma grande confusão: é como se a realidade devesse ser adequada no modelo e não o contrário, o modelo exprimir a realidade em sua multiplicidade. Assim, na tentativa de adequar todas as normas no modelo de um dispositivo legal acompanhado de sanção, fora necessário atribuir às normas que não tinham sanção( como as que permitem e autorizam) um caráter incompleto, o que impediu que o autor percebesse haver, no caso, regras de tipos lógicos distintos, com estruturas distintas. Modelos errados, descreveram mal a realidade; e modelos irrelevantes também. Esta compreensão dos modelos como instrumentos teóricos, ao em vez de fins aos quais uma teoria tem de chegar para ser apreciada como boa teoria é um dos méritos que são melhor percebidos nos escritos dos new analytical jurists.

O quarto problema é o que Summers chama de "impulso reducionista", que consiste em um inadequado uso da generalização, isto é, que acaba por reduzir a complexidade de certos fenômenos ao reduzir suas distinções e enfatizar suas semelhanças, ou, às vezes, forçar semelhanças inexistentes. A redução de todos os tipos lógicos de normas jurídicas à noção e à categoria de "comandos" é um exemplo claro disso. Evitar esta tendência é essencial para a precisão que os novos analíticos pretendem possuir.

Com "essencialismo", Summers busca caracterizar a quinta fonte de erro como aquela tendência à encontrar a "essência" das coisas à qualquer custo, mesmo onde não pode ela ser encontrada. É preciso deixar claro que buscar a essência de um fenômeno não é em si algo ruim; quando, porém, esta busca se torna um procedimento padrão, de modo a reduzir em muitos casos a complexidade e a mutabilidade dos fenômenos, então esta tendência afeta profundamente a qualidade da descrição. Pois que a busca da essência pressupõe o discernimento daquilo que é mutável e daquilo que não o é em um certo fenômeno; uma vez mal feito este discernimento, a tendência essencialista pode assumir diversos riscos.

A última tendência e fonte de erro reside no mal uso da definição per genus et differentiam. Esta definição tem a seguinte estrutura: gênero + diferença específica. Exemplo: definição de homem= animal (gênero) racional (diferença específica). Se bem que para muitas palavras seja esta definição adequada, não o é para as palavras sui generis, isto é, palavras que não podem ser introduzidas de modo adequado e próprio em um gênero bem compreendido. Exemplos destas palavras: corporação, direito( right).. o uso desta forma de definição estendido mesmo à termos que repugnam as condições necessárias para esta forma de definição não pode ser senão causa de inúmeros desentendidos e más descrições.

Vencer estas fontes de erro caracterizam com mais clareza o esforço destes teóricos que hoje, mais do que no tempo de Summers, dominam as fileiras mais numerosas da teoria do direito na contemporaneidade.

Notas:
(1) O termo me pareceu de difícil tradução por se tratar de uma coloquialidade da lingua inglesa. O contexto e algumas referências sobre a oralidade levaram-me a traduzir "to grind axes" segundo a seguinte explicação:
"To have an axe to grind is to have a dispute to take up with someone or, to have an ulterior motive; to have private ends to serve." (Fonte: https://www.phrases.org.uk/meanings/have-an-axe-to-grind.html)
A tradução mais plausível que me apareceu foi a referência à atitude de combate, belicosa, contenciosa, por motivos alheios aos da discussão em questão. Permaneço aberto à sugestões e críticas daqueles que porvertura tenham conhecimento mais aprofundado sobre esta tradução.

(2) Autores como Finnis acreditam que não. Toda questão conceitual implica uma avaliação dos elementos essenciais e esta avaliação esta vinculada, em certo grau, com as preferências metodológicas do teórico.

(3) SUMMERS, p.880.

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