A morte de Ivan Ilitch e a nossa morte: pensamentos esparsos.

Uma reunião um pouco desorganizada de alguns breves pensamentos que me vieram na leitura de "A morte de Ivan Illitch de Léon Tolstói..

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Algumas leituras fornecem àquele que as lê a possibilidade de meditar atentamente algumas verdades que, ainda que sabidas, não são tão atentamente pensadas no dia a dia. A literatura chamada “universal” nos da um grande exemplo disso. E donde o caráter “universal” atribuído à algumas obras? As dizemos universais porque dizem respeito à tudo aquilo que é próprio não apenas de um homem de uma época especifica,mas aos homens de todos os tempos e lugares. Trata, assim, de tudo aquilo que de mais humano existe, compreendendo a grandeza e a baixeza que coexistem na condição humana.
A breve obra de Tolstói, “A morte de Ivan Ilitch”, se encaixa justamente neste gênero de obras: ela não retrata aquilo que todo homem já passou; retrata, no entanto, aquilo que todo homem reconheceria ser passível de passar. Daí que o convite implícito na obra parece ser duplo: aos que se reconhecem no protagonista — que, como a maioria dos homens, não é nem 100 por cento vilão nem 100 por cento herói -, o apelo é dirigido como forma de aviso da tragédia do homem que vive imerso na “vaidade das vaidades”; aos que não se reconhecem no protagonista, o romance ainda serve como um convite a um detido exame de vida, para investigar as situações onde ainda é uma vaidade oculta que se sobressai. Para ambos os leitores, há um ponto digno de ser pensado em comum: a brevidade e o sentido da vida.
Uma breve síntese do enredo pode ajudar a desenvolver algumas breves reflexões que me vieram da leitura deste romance. Não se trata, como já fica claro, de uma história épica, com pontos altos e baixos, com herói e vilão, de tramas e guerras; trata-se, ao contrário, de um drama muito mais profundo, e tanto mais trágico porque permeia a todas as páginas do romance: a agonia de um homem que, no ápice de uma vida orientada pelo prestígio social e aparências, descobre-se gravemente enfermo. A partir daí, as páginas que surgem nada mais fazem que retratar o trato que o prestigiado Ivan Ilitch tem de começar a ter não mais com o mundo cheio de vida com o qual se acostumara, mas com a morte.
O problema que surge aí é a angústia gerada pelo iminente encontro que Ivan sabe que haverá de ter com a morte, ou em outras palavras, a angústia gerada pela experiência de finitude. E esta angústia nos fornece dramáticas páginas nas quais podemos reconhecer o drama do protagonista: o reconhecer que viveu tanto e não viveu; o reconhecer que não era capaz de encontrar o ponto que torna a vida inteligível. O mais dramático entretanto, me parece isto: não teve que reconhecer que não encontrara o sentido da vida depois de tanto procurar; teve de reconhecer, na verdade, que nunca buscara este sentido.
Alguns pensamentos soltos me vêm à mente sobre isso. O primeiro, é o grande drama da apatia em relação às grandes realidades humanas. Chega a gerar compaixão ver Ivan encarar a morte tal como uma criança de três anos encara uma equação de segundo grau. Porque se é certo que ele não estava tranquilo diante dela, também é certo que ele não a temia. A atitude ante a morte iminente era de uma completa apatia. “Simplesmente não a compreendia”, pontua Tolstói. O personagem, assim, é figura de toda massa de homens que em nosso tempo continuam a não entender a morte; não a compreendem, no entanto, porque não compreendem a vida.
“Ivan Ilitch via que estava se finando e o desespero não olargava. No fundo da alma, sabia bem que ia morrendo, mas não só não se acostumava com a idéia, como não a compreendia mesmo — uma absoluta incapacidade de compreende-la.”
Além disso, a história narrada neste romance não é original. Já fora narrada com clareza nas Sagradas Escrituras, onde o autor do Eclesiastes apresenta suas conclusões depois de tanto viver em clamores angustiantes: “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, ou ainda “nada de novo há sob o sol”. Não é outra a constatação de Ivan Ilitch. Depois de uma vida vivida apenas em função do prestígio, de uma satisfação pessoal arbitrária e vaidosa, pode, junto com autor sagrado(que alguns acreditam ser Salomão), constatar que “tudo é vaidade”. Não pudera porém, ao contrário do escritor sagrado, passar adiante ao Eclesiastes e chegar no Cântico dos Cânticos; viveu a vida como vaidade, mas não a vivera como amor, eficacíssimo remédio contra a vaidade.
As duas formas de vida, a vida como vaidade representada pelo Eclesiastes e a vida como amor representada pelo Cântico foram muito bem descritas por Peter Kreeft em seu Três Filosofias de Vida. Mas estas duas formas de vida podem nos remeter também à um outro tema, qual seja o das Duas Cidades de Santo Agostinho, que apesar de muito estudada em temas de filosofia política, serve perfeitamente para descrever dois tipos de homem dos quais o personagem de Tolstói é uma figura: a primeira cidade, dita Cidade de Deus, é aquela em que o amor humano é ordenada de modo tão perfeito à Deus, a ponto de chegar a um desprezo de si, não querendo assim o amante nada para si senão Aquele a quem ama. A outra cidade, dita dos homens, é aquela na qual o homem ama a si de modo tão desordenado que chega ao desprezo de Deus e do próximo.
A segunda cidade personifica a atitude de Ivan Ilitch quanto a sua vida, o que o leva a não compreender a sua morte. Se no primeiro caso, o da cidade de Deus, todo o amor é ordenado à Deus, no segundo todo o amor aos outros está subordinado à si mesmo. Ivan não pudera casar-se com Prascóvia por ama-la e por isso querer passar o resto de sua vida a gastar-se por ela; casou-se por causa de um capricho pessoal, por ser conveniente à sua posição social no momento; não pudera ser motivado em seu exercício judiciário pelo amor à justiça, mas pelo prestígio que o reto exercício da justiça podia lhe dar. O critério de tudo era a satisfação pessoal, e o resto seria meio. Seu ego ocupava a centralidade de todas as suas considerações. Considerava-se especial, cuja especialidade implicava, cria ele, que para ele tudo fosse distinto do que era para todos os outros. Isto é expresso no momento em que ele se depara com a consideração de que também ele haveria, como todos os outros, igual a todos os outros, de morrer:
“O exemplo de silogismo que a´rendera no compêndio de Lógica de Kiesewetter — ´Caio é um homem, todos os homens são mortais, logo Caio é mortal´ — sempre lhe parecera exato em relação a Caio, jamais em relação a ele. Que Caio, o homem abstrato, fosse mortal, era perfeitamente certo; ele, porém, não era Caio, não era um homem abstrato, era um ser completa e absolutamente distinto de todos os demais. […] Caio é de fato mortal e, portanto, é justo que morra, mas quanto a mim, o pequeno Vãnia, Ivan Ilitch, com todos os meus sentimentos e minhas idéias, o caso é inteiramente outro. É impossível que eu tenha de morrer.” (p.44)
Assim, Ivan percebera bem uma verdade fundamental: a unicidade pessoal. Cada pessoa é única, no sentido menos clichê possível; cada uma vive realidades pessoais que são incomunicáveis. E a unicidade pessoal de cada um é expressão da dignidade com a qual a natureza humana foi dotada. O valor desta unicidade, entretanto, exige uma resposta que é precisamente o oposto daquela que Ivan dera em toda sua vida. O reconhecimento da unicidade de cada pessoa, e a sua por conseguinte, não pode implicar um fechamento em si mesmo, um fechamento egoísta com ar de superioridade;este reconhecimento implica, ao contrário, dom de si.
Que tragédia perceber a vida desvanecer, percebendo ao mesmo tempo que não fomos capazes de doar-nos àqueles que são “outros eu´s”, que partilham, como eu, as alegrias e os dramas da condição humana. Tragédia maior ainda se considerarmos que, não sendo o dom de si outra coisa senão o amor, passamos a vida sem conhecer esta realidade que é o ápice da vida humana; e não poderá amar a Deus na eternidade aquele que não souber ama-lO aqui no tempo, não saberá ama-lO aqui no tempo aquele que não souber amar aqueles que são sua imagem e semelhança.
O último ponto, que dentre os que ja citei [a apatia sobre as grandes realidades humanas e o reconhecimento da unicidade pessoal] é o mais aparente na obra, é o da brevidade da vida. Não fora algo planejado nem esperado por Ivan Illitch a fortuna que lhe adveio da doença que causaria sua morte; mas algo corriqueiro, que ocorreu repentinamente no ápice da realização de sua vida de vaidades. Os planos, os projetos, os sonhos.. onde ficaram agora? De que serviu-lhe ganhar o mundo? Considerar que a qualquer momento, a qualquer dia, pode nossa vida ter seu fim foi um dos pontos que me marcou grandemente no romance.
A vida é breve.
A constatação desta brevidade, entretanto, levaria a uma conclusão equivocada caso se pensasse que a resposta para esta brevidade consiste em um “carpe diem” que, sendo moda em livros de auto-ajuda, quer indicar um aproveitar da vida sem deixar de gozar nenhum prazer que se nos apresenta. A verdade é o contrário: é porque a vida é breve que não nos convém viver como animais. É porque ela é breve que cada instante deve ser um constante elevar do coração àquilo a que realmente o homem foi criado: à verdade, à beleza, ao amor. É porque a vida é breve que é preciso ser um daqueles que, nos termos de Dietrich Von Hildebrand, se encontra no grupo dos que vivem a vida segundo o valor, segundo aquilo que é importante em si mesmo. Se não o fizermos, em que se distingue nossa vida da dos outros animais? Em que reconhecemos nossa imagem e semelhança com o Divino Criador? É porque a vida é breve, que quanto possível é preciso a ordenemos para aquele de quem Santo Agostinho dizia que está inquieto nosso coração enquanto não nEle repousar.
Reflexões breves e, até certo ponto, um pouco clichês. Mas para aqueles que, como eu, precisam sempre relembrar algumas verdades importantes sobre a vida, talvez sejam pertinentes de ser partilhadas..
A morte vos espera em toda a parte; se fordes prudentes, esperai vós por ela em todo o lugar."
(São Bernardo)

Comentários

  1. Excelente, André! Ivan Ilitch, de certa forma, me lembra o Scrooge, de Charles Dickens. Ebenezer Scrooge leva uma vida miserável, mesquinha e avarenta e em uma noite de Natal que decididamente mudará sua vida, é visitado pelo amigo e ex sócio Jacob Marley (já falecido) e 3 fantasmas de Natal: O do passado, do presente e do futuro. Enquanto a pedra de toque de Ivan é seu próprio leito de morte e a proximidade daquela "nossa irmã, da qual nenhum vivente pode escapar" como dizia São Francisco, Scrooge é visitado pelas memórias de uma vida que nem sempre foi tão insípida e dessa forma não é somente um senhorzinho insignificante que costumava acumular suas moedinhas sem fim e agora as dá por liberalidade e caridade, mas sim um homem completamente morto por dentro trazido à vida pela graça abundante e incessante de Deus, é como um Lazáro. E por fim, tanto Ivan quanto Scrooge representam facetas de nossa própria vida, muitas vezes. Assim, como Anna Karenina com seus amores arrebatadores que de fato arrebatam tudo - a dignidade, a decência e até a própria vida. Uma Anna que é completamente oposta em suas decisões por uma Jane Eyre, de Charlotte Brontë. Ou como uma mulher pode encher de encanto um homem, ainda que sua realidade de vida esteja inserida em um contexto delicado como o que acomteceu entre Raskolnikov e Sônia e Dom Quixote e sua Dulcinéia. Quantos de nós não vemos repetir por aí os desatinos de uma Anna, a fuga de uma Jane Eyre, a mudança completa de um Scrooge? A literatura, como um sino de mosteiro, nos lembra a cada período de tempo que os dramas humanos são sua principal substância e por sê-lo, ressoa ao homem de todo tempo, de todo século.
    Adorei seu texto! Obrigada!

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