A teoria analítica do Direito: uma introdução(parte 01).


O artigo de Robert Summers, publicado em 1966, denominado "The new analytical jurists" constitui uma formidável síntese dos elementos fundamentais daquilo que podemos chamar de teoria analítica do Direito. Compreender esta corrente é de grande importância a quem quer que deseje aprofundar-se com seriedade no estudo das teorias do Direito, e é dificil prosseguir neste estudo sem apreciar as teses e os méritos deste tipo de teoria.

Neste texto, tenho dois objetivos principais: o primeiro, fornecer uma síntese da exposição de Robert Summers, explicando aquilo em que consiste a (nova) teoria analítica do direito, e depois apresentar como esta teoria tem se desenvolvido contemporaneamente, já que o artigo de Summers, pelo momento em que foi escrito, não pudera tomar notas do crescimento deste modo de pensar o direito. Coloquei, além disso, no final do texto um esquema que pode ser útil para aqueles que buscam sistematizar o artigo seja para fins de aula, seja para fins de estudo pessoal.

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O professor Robert S. Summers.


O termo jurisprudence é usado para aludir ao que, no Brasil, chamamos geralmente de Teoria do Direito. Assim, quando se fala em "new analytical jurists", seria um engano atribuir à jurists o sentido que em nosso país se atribui ao termo "jurista". Em verdade, é preciso deixar claro que quando se fala em jurist, fala-se daquele que está empenhado em estudar a jurisprudence, que é a disciplina que tem por objeto o estudo da natureza do Direito e de todas as noções que estão vinculadas à esse objeto. Não se pretende, assim, estudar o direito substantivo de um determinado país, embora este estudo possa ser-lhe útil; mas pretende estudar, conceitualmente, o que é o Direito e qual a sua natureza, qualquer que seja o lugar e as circunstâncias em que se encontre a isto que é dito "Direito". Feito este esclarecimento, tenha-se em mente que, não obstante isto, decidi manter o termo "jurista" como correspondente ao inglês jurist, para que possa ser mais próximo do termo inglês. Mas o sentido que o termo irá assumir será o correspondente aproximado à teórico do Direito, isto é, aquele que estuda a essência do direito.

Quando se trata de teoria analítica do direito (analytical jurisprudence), algumas confusões podem surgir inicialmente. A primeira delas é a dificuldade de definir as notas essenciais que constituem esta corrente. Esta dificuldade surge, dentre outros fatores, da inclusão dentro do rol de teóricos analíticos autores que possuem divergências fundamentais, tanto teóricas quanto metodológicas: assim, um Hart e um Hobbes, um Austin e um Dworkin, um Raz e um Finnis são incluídos todos sob a mesma qualificação de teóricos analíticos, e o esforço consiste em buscar encontrar as notas comuns em seus empreendimentos teóricos. Antes, porém, de encontrar as notas comuns, talvez seja mais proveitoso iniciar com importantes distinções, seguindo o próprio esforço de Summers. E a primeira distinção a ser traçada é a entre a antiga teoria analítica (´old´ analytical jurisprudence) e a nova teoria analítica( ´new´ analytical jurisprudence), ou melhor, entre os antigos juristas/teóricos analíticos e os new analytical jurists, os novos teóricos analíticos.

As diferenças traçadas, porém, não nos podem levar a alguns enganos. Não se pretende dizer que as atividades dos "novos juristas analíticos" são novas para o campo da filosofia. As investigações da filosofia analítica em geral, com, por exemplo, Wittgenstein e Russell antecedem as considerações dos juristas aqui analisados, e é destes autores que os novos teóricos analíticos irão buscar sua inspiração para desenvolver os métodos de análise do direito. Também não se quer levar a crer que os autores colocados entre os teóricos analíticos contemporâneos são um conjunto homogêneo, que não discorda de questões específicas. Nada estaria tão longe da realidade. Outra advertência, a penultima, precisa ser feita: não se quer, ao afirmar serem estes teóricos "analíticos", negar qualquer interesse que eles possam ter por uma investigação de caráter sociológico ou valorativo; apenas se quer enfatizar o que os pode unir como analíticos, embora deixando intacta a diferença de interesses e de ênfase em suas investigações. Por fim, diz Summers, não se quer afirmar que eles possuem um monopólio dentro da teoria do direito. Esta última afirmação, embora talvez compreensível no tempo em que o artigo fora escrito, não pode ser considerada com tanta seriedade hoje em dia, considerada a imensa influência que a teoria analítica alcança em nossos tempos, sendo mais fácil pontuar aqueles que dela se distanciam do que aqueles que com ela se identificam.

São quatro as diferenças atribuídas ao novos analíticos em relação aos antigos (SUMMERS, p.863): (i) possuem um escopo maior do que seus antecessores, (ii) são mais sofisticados metodologicamente, (iii) menos doutrinários/dogmáticos e positivistas e (iv) tendem a fornecer, com suas especulações, mais contribuições de relevância prática.

Quanto à primeira diferença(i), a de escopo, os novos teóricos possuem quatro atividades características: (i.i) análise do plano de fundo conceitual existente sobre o Direito e do Direito, atividade chamada analise conceitual, e é a mais característica desta corrente; (i.ii) a construção de novos arcabouços conceituais com desenvolvimentos terminológicos; (i.iii.) justificação racional de instituições e práticas e (i.iv) investigação das implicações intencionais.

A importância da análise conceitual consiste em sua capacidade de fornecer clareza e profundidade ao empreendimento teórico A definição dada por Summers dessa análise é digna de apreciação:

"Que é a analise conceitual? Que digamos ´analise conceitual´ ou ´analise do uso das palavras´, as coisas permanecem o mesmo. O termo ´análise linguistica´, apesar de muito usado, é menos apropriado. Ele implica que a linguagem é, ela mesma, o objeto relevante, e ela não o é. O objeto relevante consiste em conceitos ou ideias correntemente usadas seja por legisladores ou profissionais que lidam com o Direito." (SUMMERS, p.867)

Isto equivale dizer que o que interessa na análise conceitual é a busca de melhor compreensão sobre os conceitos tais como eles são usados na prática relevante na qual eles estão inseridos. Não se trata, pois, de uma análise do tipo "gramatical" ou etimológica, embora estas duas dimensões de análise não precisem ser descartadas. Explico: o objetivo do jurista analítico não é investigar, por exemplo, a origem da palavra "justiça", sua relação com o "iustum" , com o "ius" e com a "diké". O recurso à estes métodos pode ter seu lugar, mas estará vinculado e subordinado à análise dos conceitos e das realidades às quais eles, dentro de uma prática social específica, se remetem. Assim, ao tratar sobre a justiça, por exemplo, o jurista buscará distinguir e precisar os usos que esta palavra possui dentro da prática jurídica, discernindo, por exemplo, as múltiplas acepções que esta palavra assume na prática concreta: justiça social, justiça retributiva, justiça legal e etc.. e, dentro de cada categoria, precisará distinções adicionais que ajudem na compreensão da realidade à qual o conceito remete. É a realidade o objetivo; a análise conceitual, um instrumento.

Se percebe assim com clareza que, dentro da mesma operação de análise conceitual, está contido como um instrumento de grande utilidade o dispositivo da analogia, por meio do qual o jurista busca estabelecer, para os diversos usos de um mesmo conceito X, um princípio de unidade, de unificação, segundo o qual os diversos usos deste conceito poderão ser apreciados como adequados ou inadequados; segundo o qual será possível julgar como deficiente a justiça legal à medida em que se afasta do sentido do conceito básico de justiça.

O uso do dispositivo da analogia na teoria analítica do Direito iria se mostrar de grande importancia posteriormente em uma obra que, por ser posterior ao artigo de Summers, não pode por ele ser apreciada: a de John Finnis(1980), que inaugura o chamado jusnaturalismo analítico. O método da analogia na análise conceitual na obra de Finnis se verifica, sobretudo, em sua metodologia do caso central e do significado focal. Para Finnis, é preciso ao teórico do Direito, para uma descrição bem sucedida, discernir os significados focais dos significados periféricos dos conceitos, ou em outras palavras, discernir o analogado principal dos outros analogados. Para meus propósitos nesta breve exposição, apenas a consideração do significado focal interessa; para uma análise mais completa remeto a um texto sobre sua metodologia em geral, que pode ser encontrado em:http://soliloquiosfilosofia.blogspot.com/2018/09/o-jusnaturalismo-neoclassico-de-john.html.

Esta preocupação com os conceitos tal como eles são usados em uma prática social específica é um ponto de profunda relevância, pois distingue os juristas analíticos ditos "antigos" daqueles ditos "novos"  em razão da maior ressonância prática que a análise destes últimos possui. É a diferença que enunciamos em (iv).

Não lhes basta, entretanto, analisar os usos dos conceitos já existentes. É necessário, e este é outro ponto característico, construir novos arcabouços e planos de fundo conceituais que permitam explicar mais adequadamente a prática jurídica. É dupla a razão para isto: (a) a insuficiência e limitação do arcabouço conceitual já existente, que precisa ser adaptado  para bem explicar (b) a mudança daquelas coisas significadas pelos conceitos.

A terceira atividade é a justificação racional(i.iii) das práticas. A justificação racional com a qual o jurista está preocupado, entretanto, não é a mesma com que se preocupa o político ou o ideólogo: não quer justificar a legitimidade da obediência ou desobediência de um regime específico, mas antes identificar as condições sob as quais, em qualquer regime, a obediência pode ser qualificada como "legítima", e quais são os critérios a partir dos quais se pode adequadamente julgar um ato como "legítimo" dentro de uma determinada prática social. É certo que esta atividade pode ter um caráter mais ou menos valorativo. Mas ela é analítica ao menso no sentido em que busca distinguir, precisar e construir argumentos racionais(SUMMERS, p.876).

Por fim, ainda sobre o escopo da teoria analítica(i), a quarta atividade que caracteriza esta amplitude é a (i.iv) investigação das implicações intencionais, isto é, a investigação daquilo que está implicado ou não está implicado em uma determinada definição ou descrição de uma prática. Diz Summers que "esta atividade é analítica ao menos no sentido positivo de que envolve traçar as implicações daquilo que pode ser chamado de ´premissas sociais´"(SUMMMERS, p.877). Por exemplo, da premissa de que o Direito reivindica autoridade sempre segue-se a conclusão de que são necessárias sanções para a eficácia das regras jurídicas? Ou: da premissa de que é necessária certa reciprocidade entre legislador e o sujeito legal para a eficácia do direito, segue-se que as regras devam ser escritas, públicas e de efeito não-retroativo? Ou que ele tem de satisfazer um conjunto mínimo de requisitos de moralidade? A investigação levada a cabo neste sentido busca reduzir as inconsistências dos argumentos, garantindo, ou ao menos gerando mais condições para uma boa descrição do Direito.Estas quatro atividades e o modo com que caracterizam os "new analytical jurists" são sintetizadas do seguinte modo:
" Em suma, pode ser dito que as preocupações dos novos juristas anlíticos são mais amplas em ao menos dois importantes aspectos - eles estão realizando uma maior variedade de atividades analíticas e, fazendo a analise conceitual, sempre uma maior preocupação para os analíticos, estão focando em um número mais amplo de problemas." (SUMMERS, p.877)

Constituem estas algumas características dos novos juristas analíticos, que manifestam a amplitude de seu escopo de análise. Em um próximo texto, espero poder investigar as outras caracteristicas enumeradas por Summers e enunciadas no esquema geral do artigo.

ESQUEMA GERAL DO ARTIGO.


  • Juristas analíticos
    • Antigos. Ex: Hobbes, Austin..
    • Novos.  Ex: Hart, Dworkin, Raz..
      • Quatro características dos novos, que os distinguem dos antigos.
        • Maior escopo de análise.
          • Análise conceitual.
          • Construção de arcabouço conceitual.
          • Justificação racional.
          • Investigação das implicações intencionais( purposive implications).
        • Mais sofisticados metodologicamente: buscam corrigir seis fontes de erros dos antigos, que são:
          • A tendência de converter questões conceituais em estreitas questões de fato.
          • A tendencia de "grind axes".
          • A influência de modelos inadequados.
          • O impulso reducionista.
          • Essencialismo.
          • Mal uso da definição de gênero mais diferença específica (per genus et differentiam).
        • Menos dogmáticos e positivistas.
          • Menos doutrinários: diferença entre doutrina e disciplina.
          • Menos positivistas.
        • Tendem a fornecer contribuições de maior relevância prática.

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