Filosofia Política no De Regno de Santo Tomás de Aquino(I): a sociabilidade humana.
Este é o primeiro texto com o qual abro este blog. Nele, a partir de um fichamento que fiz da obra De Regno de Santo Tomás de Aquino, faço uma breve exposição dos argumentos principais do tema e com alguns comentários adicionais que podem, espero, contribuir para melhor compreensão da obra.
Neste primeiro, limito-me a comentar sobre a sociabilidade humana, tema do primeiro capítulo da obra, mas espero aos poucos ir comentando-a inteira, tratando os principais tópicos da filosofia política contida no De Regno.
Espero que possa ser de proveito para os que buscam a verdade estas pequenas contribuições.
A obra de Santo Tomás de Aquino vem, nos últimos tempos, despertando grande interesse naqueles envolvidos com as mais diversas áreas da filosofia. Na filosofia do Direito, por exemplo, com a qual tenho mais familiaridade, se percebe um interesse renovado em autores que buscam introduzir a teoria da lei natural de Aquino nos debates de teoria analítica do direito. Exemplo de autores que se filiam e fundam esta tradição são Germain Grisez, John Finnis e muitos outros que descobriram a riqueza de uma filosofia que fala a todos os tempos e a todos os homens e fazem esforços por torna-la inteligível e relevante em debates onde, muitas vezes por tristes pré-concepções, as contribuições da filosofia clássica não são sequer apreciadas.
Apesar disso, ainda a bibliografia que se tem no Brasil acerca da filosofia política de Santo Tomás é um pouco escassa. O que torna que para muitos inacessível o aprofundamento nas obras deste grande doutor. Mas com alegria vejo serem editadas obras que há um bom tempo não se tinha fácil acesso. A edição recente do De Regno pela editora Resistência Cultural é exemplo disso, e, sendo ainda pouco conhecida pelo público em geral, mesmo interessados na filosofia tomista, me parece adequado tentar contribuir para difundi-la. Assim, talvez possamos em breve ter a esperança de que o retorno ao realismo tomista nas mais diversas áreas do conhecimento possa dar parte do remédio ao caos que vemos hoje corroer a sociedade; o remédio definitivo e que torna todos os outros eficazes, entretanto, sabemos ser sobrenatural: a graça divina. Cabe, para a restauração da ordem pessoal e social, implora-la como se tudo dependesse de Deus -como de fato depende-, e trabalhar como se tudo dependesse de nós. Esta feliz frase de Santo Inácio pode nos dar a diretriz de como trabalhar para restaurar os fundamentos da ordem social.
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Para tratar de filosofia política, sobre o modo de ordenação da pólis, nada mais adequado do que "começar pelo início", considerando o homem que constitui e participa desta pólis. Assim, a primeira consideração feita por Santo Tomás, e que serve de fundamento para o restante da obra, diz respeito à natureza social do homem. Esta sociabilidade é afirmada por duas bases:
- A incapacidade de levar uma vida com suficiência sozinho ou vulnerabilidade humana.
Esta constatação de que o homem necessita se associar a outros para viver com suficiência dá origem a um argumento que pode ser formulado do seguinte modo: constata-se que cada ser natural possui certas características que permitem com que alcance seu fim, seu telos, o que torna manifesta a ordem com a qual esta dotado o universo. Ao homem, porém, vemo-lo estar aparentemente menos dotado fisicamente do que outros animais, por exemplo, que possuem chifres, altura, força corporal e outros caracteres que os permitem sobreviver com certa facilidade às intempéries naturais e aos perigos que os ameaçam; entretanto, ao homem, se bem que estas capacidades faltam, lhe foi dada a razão para que pudesse, com ela, alcançar seus objetivos. Mas mesmo com ela, não poderia o homem garantir sozinho sua sobrevivência, dados os perigos e insuficiências existentes na natureza. Por isso, é natural ao homem se associar a outros para viver uma vida com suficiência. - Incapacidade do homem de, sozinho, apreender todas as verdades singulares necessárias para sua vida ou limitação da faculdade intelectual.
Além disso, não obstante o homem possuir a faculdade intelectual, que o eleva acima de todos os animais que dela carecem, esta é de certo modo limitada por diversos fatores: a sanidade das faculdades sensíveis (nihil in intellectu nec prius in sensu), o tempo exigido para alcançar determinado conhecimento, a profundidade de certos conhecimentos e etc. Fica claro então que existe uma limitação na capacidade intelectiva humana.
Por causa desta limitação, o homem não é capaz de alcançar, sozinho, todas as verdades singulares necessárias para a vida humana. Dai, segue-se a conclusão de Tomás, de que "é necessário ao homem viver em multidão, de modo que um ajude ao outro, e diversos se ocupem de investigar diversas coisas por meio da razão"( De Regno, cap. I).
Duas, pois, são as razões que levam à afirmação da natureza social do homem, que constitui o fundamento da filosofia política apresentada na obra. Me parece, porém, necessário elucidar algumas questões que poderiam ser causa de confusão ou incompreensão para aqueles não tão acostumados aos termos da filosofia tomista.
A primeira questão é sobre o sentido que aqui é adotado o termo "natureza". Questão complexa e que pode ser assunto de outro texto. Mas, em linhas gerais, a natureza aqui usada quer indicar aquilo que constitui essencialmente um determinado ente. Por isso, em se tratando de natureza humana, ou sobre aquilo que é natural ao homem, constitui erro grave tomar como modelo de análise os animais irracionais, por exemplo, como se o homem fosse apenas um deles com uma capacidade mais desenvolvida. O homem, considerado segundo uma antropologia realista, tem como nota distintiva o ser dotado de razão, sendo esta a razão de dizermos que possui natureza racional.
Isto é de profunda relevância quando tratamos da sociabilidade. Isso porque o próprio Tomás de Aquino faz certa analogia entre a associação entre os animais irracionais em uma matilha, em um cardume, e a associação entre os homens em sociedade política, familiar ou religiosa. Esta analogia,entretanto, só é bem compreendida uma vez consideradas as diferenças essenciais entre o homem e o animal irracional.
Isto é de profunda relevância quando tratamos da sociabilidade. Isso porque o próprio Tomás de Aquino faz certa analogia entre a associação entre os animais irracionais em uma matilha, em um cardume, e a associação entre os homens em sociedade política, familiar ou religiosa. Esta analogia,entretanto, só é bem compreendida uma vez consideradas as diferenças essenciais entre o homem e o animal irracional.
Se bem que é natural ao homem e ao animal a associação com seus semelhantes, sendo a natureza humana distinta da natureza dos animais não dotados de razão, segue-se que o modo desta associação e as razões dela serão distintos também. A associação a outros de sua espécie é instintiva nos animais, e é feita à medida em que é necessária para a sobrevivência da espécie. No homem, por sua vez, esta associação não ocorre por meio de instintos de sobrevivência( ou ao menos não pode ser reduzida a estes instintos), mas pelo fato de o homem apreender pela razão como um bem para si e para o outro a sociabilidade, e voluntariamente se adequar a suas exigências e mais ainda: ultrapassar suas exigências, e associar-se a outros ainda que esta associação não lhe seja diretamente "útil" para a sobrevivência. Os animais se associam para sobreviver, para se alimentar, para caçar; mas somente os homens se associam para buscar a verdade, para se divertir em conversações amigáveis e para jogar cartas, coisas que não parecem "úteis" para nada, mas que são pelo homem apreendidas como bens que constituem a sua realização enquanto homem. Os animais podem copular com outros de sexo oposto instintivamente para garantir a sobrevivência da espécie; só o homem pode se associar à mulher não só para perpetuar a espécie, mas por amor.
Assim, ainda que a sociabilidade humana tenha em comum com a dos animais o ser da primeira ordem da realidade( a ordem biológica, da natureza), ela a ultrapassa e constitui-se, primariamente, em um fenômeno da terceira ordem da realidade, a ordem prática, a ordem dos atos humanos. Natural ao homem é ser racional. Portanto, ao dizer que é natural ao homem ser social, queremos dizer que é razoável, é conforme à razão, pelas razões supracitadas, que o homem se associe aos outros para alcançar sua realização.
Considerada assim essa natureza social do homem, está aberto o caminho para outras questões mais profundas: o modo de ordenação da sociedade, a relação entre a sociedade terrena e a espiritual e muitas outras profundamente relevantes. Mas estes são temas dos próximos capítulos..
Excelente!
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