Notas biográficas de Dietrich Von Hildebrand: um cavaleiro do amor, da verdade e da beleza.
Este texto é o desenvolvimento da primeira parte de uma palestra que fiz sobre a filosofia de Dietrich Von Hildebrand. A sua obra, com a qual tive contato recentemente, ainda é pouco conhecida e suas contribuições filosóficas por vezes não apreciadas como deveriam. Me parece, por isso, que sua contribuição para a filosofia do século XX deve ser reconsiderada com mais atenção. E é isto que move a tentar contribuir com este texto introdutório, sobre algumas características deste grande homem que, além da honra de ser considerado "o inimigo número 1 do nacional-socialismo" e ser introduzido dentro da lista negra de Hitler, também fora chamado por Pio XII de "o Doutor da Igreja do século XX".
Que a leitura deste texto possa contribuir no enriquecimento intelectual de muitos, mas também no enriquecimento moral que nos dá o testemunho da vida deste gigante que viveu a vida de um autêntico filósofo: ordenando sua vida segundo o aquilo que é bom, justo e verdadeiro.
A partir já da década de 30, vê-se surgir correntes novas de pensamento clássico que, se bem que aderissem às teses mais fundamentais da filosofia grega e escolástica, também buscavam não se fechar nesses sistemas filosóficos. A dificuldade de dialogar com as tradições filosóficas modernas, para quem os termos mais comuns da filosofia aristotélica e escolástica medieval se tornaram quase ininteligíveis( as vezes por circunstancias históricas e até mesmo por pré-concepções), deu razão para o surgimento de um movimento que buscava traduzir as teses filosóficas clássicas para uma linguagem mais inteligível aos ouvidos modernos, a fim de criar condições adequadas para um diálogo e colher as positividades que cada filosofia contemporânea tinha a oferecer para um aprofundamento na investigação filosófica, cujas bases já tinham sido assentadas por um Platão, um Aristóteles, um Agostinho, um Boaventura, um Tomás e etc. Dentro deste vasto movimento se insere Dietrich Von Hildebrand, cujas investigações filosóficas são um dom a tantos quantos que, a partir de uma experiência de maravilhamento diante da realidade, enveredam na busca sincera e humilde pela verdade.
Nascido em 1889 em Florença, alguns traços de Hildebrand me parecem importantes, à titulo de introdução, para compreender sua obra. Mas estes traços só podem ser compreendidos a partir de uma atitude fundamental que marca toda a vida deste grande homem: a reverência. É esta atitude uma das mais mencionadas em sua obra, e manifesta uma certa exigência de que o homem curve sua alma diante de tudo aquilo que é verdadeiro, belo e amável; que tenha uma postura reverente diante daquilo que o transcende, em reconhecimento humilde da transcendência daquilo que tem uma importância em si mesmo, independente da impressão que me causa.
A partir desta atitude, quatro notas me parecem marca mais profundamente sua infância e adolescência. A primeira delas é a reverência pela beleza. Esta não surpreende se considerado o meio no qual o pequeno Dietrich nasceu e cresceu. Sendo filho do grande escultor Adolf Von Hildebrand, acostumou-se com uma vida na qual a beleza estética tinha lugar privilegiado. Nada que tivesse notas de feiura, seja estética ou musical, estava autorizada a entrar naquela casa. O apreço cultivado desde a infância por artistas como Bach e Betoven e escultores como Michelângelo mostra que a arte ocupava em sua vida um papel indispensável, e era vivida de maneira tão profunda pelo menino que foi um dos primeiros temas que tratou e estudou no início de sua vida acadêmica.
Outra nota, a segunda delas, mas que marca profundamente é a reverência pelo feminino. Esta se explica, em grande parte, pela convivência com sua mãe e suas cinco irmãs, com as quais passava a maior parte de seu tempo. A atmosfera na qual estava inserido não o tornou a ele mesmo um menino a quem poderíamos dizer que era sentimental ou mesmo feminino; ao contrário, o levou a perceber que não é possível ser homem sem ter um profundo respeito pela dignidade da mulher, sem olhar para elas e vê-las como um dom dado por Deus para destacar a beleza da criação e o zelo com o qual foi feita. Episódio que ilustra esta reverência é o ocorrido quando o pequeno Dietrich ainda contava com dez anos de idade; escrevendo uma peça de teatro, colocava na boca do herói os mais apaixonados louvores à heroína, como descrito no trecho abaixo:
"Ele eloquentemente cantava os louvores da heroína: ´As mulheres são definitivamente superiores aos homens. São mais poéticas, atraentes, amáveis; tem vozes mais suaves´ e assim por diante. Obviamente, o jovem autor estava tentando colocar em palavras sua amável admiração por sua mãe e suas cinco irmãs. ´Mas´, terminava o monólogo, ´os homens possuem uma grande vantagem sobre as mulheres; pois enquanto estas amam os homens, que merecem menos, os homens amam as mulheres, que merecem mais´."(1)Não é possível não ver como esta reverência profunda pelo feminino o inspirará a, mais tarde, escrever obras em que destaca a grandeza do amor entre o homem e a mulher(2), tratando como a compreensão desta grandeza tem como pressuposto o reconhecimento da diferença profunda, a complementariedade tanto na ordem biológica(no caso do amor conjugal) como na ordem espiritual existente entre ambos. Esta complementariedade é um dom a ambos e, longe de ser fonte da atitude de colocar "um sob jugo do outro"(como por vezes é injustamente afirmado por alguns movimentos sociais contemporâneos), torna manifesta a igual dignidade substancial entre homem e mulher, o serem imago Dei e, por isto, sua capacidade de amar e ser assim um dom de si para outro. Não à toa é colocado pelo apostolo como modelo dessa união a união de Cristo com a Igreja.
Mais um traço característico é a profunda reverência em relação à esfera moral. Esta se manifestou muito cedo no menino, apesar da família que, à época, tinha uma tendência a uma compreensão moral relativista. Dietrich, sobretudo na adolescência, amadureceu uma percepção que, como pretendo escrever em outra postagem, seria fundamental em sua filosofia: a de que existe uma hierarquia de valores , uma hierarquia objetiva de bens que reivindicam de nós tipos e graus distintos de respostas. Por isso, sempre foi claro para o menino que, por exemplo, os estudos não poderiam ser o ditame de toda sua vida, pois apesar de serem de grande importância, não poderiam suprimir ou obscurecer o amor devido à família. Esta importância ordenada hierarquicamente, longe de ser fruto de escolha humana, é algo que se-nos apresenta como uma propriedade da parte do objeto, sendo portanto objetiva. Esta defesa da objetividade da esfera moral pode ser vista em um episódio que não deixa de ser engraçado, e que mostra um pouco da personalidade do pequeno Dietrich:
"Aos 14 anos, enquanto caminhava com Nini, ela tentou convence-lo que os valores morais são puramente relativos, dependentes do tempo, espaço e circunstancias nas quais o homem se encontra. Para sua surpresa, seu irmão a desafiou vigorosamente e ofereceu uma grande gama de argumentos para provar que a irmã estava errada. Um pouco perplexa por este ataque, Nini tentou ganhar sua ascendencia para ela quando, retornando para casa, ela chamou o pai em seu auxilio: ´Imagine, papai, o Dietrich se recusa a compreender que todos os valores morais são relativos´. ´Nini´, o pai respondeu, ´não esqueça que ele tem somente catorze anos´. O garoto, incomodado, respondeu: ´Papai, se o senhor não tem um argumento melhor que o da minha idade para oferecer contra minha posição, então sua posição deve estar assentada sob bases realmente fracas´. "(3)
O agir tendo em vista a hierarquia existente entre os valores, tendo em vista aquilo que o que é importante em si mesmo exige de minha parte, constitui grande parte a consideração moral de Hildebrand. Aqui já é possível ver a semelhança que esta "hierarquia de valores" possui em relação à "ordo amoris" de Santo Agostinho. Esta convicção o acompanhou por toda sua obra, e é tratada diligentemente principalmente em sua Ética Cristiana e Atitudes éticas fundamentais. Voltarei a isto em momento oportuno.
Por fim, é importante destacar a reverência religiosa que marcou a infância de Hildebrand e que, de certo modo, foi uma característica que forneceu condições para que ele trilhasse, mais para frente, seu caminho de conversão ao catolicismo. Que esta característica tenha sido presente na vida de Hildebrand é, ao contrário da reverência pela beleza estética, surpreendente. Isto se deve ao fato de que esta reverência do menino não foi influenciada pela sua família, mas ao contrário: ela foi vivida apesar da família que, embora tendo uma reverência por muitos bens naturais que merecem a admiração do homem, poderia ser dita sem exagero ser formada por "nobres pagãos. Seus pais, por exemplo, embora oficialmente protestantes, nunca tocavam em matérias religiosas e nem participavam das cerimônias(4); seu pai, além disso, possuía tendências panteístas. Mais como uma convenção social do que em razão de uma autêntica consciência do significado do batismo, as seis crianças Hildebrand( Dietrich e suas seis irmãs) foram batizadas por um ministro protestante. Entretanto, diferente de suas cinco irmãs e de seus pais, a postura com a qual Dietrich participou da cerimônia foi marcada pela gravidade, por uma devoção profunda que não se esperaria de um menino de seis anos cuja família era apática em relação à atmosfera religiosa. Esta atmosfera de sacralidade experimentada pelo menino lhe dava o sentido da grandeza do mistério que ainda não compreendia, mas à qual já inclinava o espírito. Considerando o ambiente familiar, não me parece inadequado ver como estas características de suas personalidade foram uma espécie de preâmbulo que a Providência deu ao menino para que um dia ele chegasse à Fé verdadeira. Três episódios mostram de que maneira esta atração pela religião manifestava-se no menino.
O primeiro, se dá em uma conversa inocente com sua irmã Bertele:
"Antes de irem dormir, as crianças conversavam, e Bertele disse ao jovem irmão que sua mãe havia dito á mesa que Cristo era filho de Deus da mesma maneira que todos os homens podem ser considerados filhos de Deus, e que não havia nada de especial em relação à Cristo. Para sua surpresa, seu irmãozinho pulou da cama, ergueu a mão e disse solenemente: ´ E eu te juro que Cristo é Deus´. Uma resposta que a deixou perplexa, é claro - mas uma prefiguração da profissão de fé que ele faria em 1914, quando da sua entrada na Igreja Católica."(5)A atmosfera sagrada das igrejas também inspiravam em Dietrich, mais que um senso de admiração pela beleza estética( o que movia sua família principalmente), um senso de devoção, uma poderosa atração pela atmosfera religiosa que causava estranheza em sua família. Em uma visita à Catedral de Milão, esta estranheza pela atitude do menino frente ao sagrado se fez notar:
"Quando tinha oito anos, [sua irmã] Lisl o levou para Milão e mostrou-lhe a catedral, levando a atenção de seu irmão para a beleza arquitetônica. Mas ela surpreendeu-se quando Dietrich insistiu em fazer a genuflexão diante de cada altar da Catedral- e eram muitos. ´Se continuares a fazer essa boba performance, não lhe mostrarei a catedral´, declarou ela. Esta ameaça não fez qualquer impressão sobre seu irmão. Por mais que amasse sua irmã, ele sentia que, neste caso, ele estava certo e ela estava errada, ele por isso ele não estava obrigado à ceder às suas exigências."(6)Além disso, esta poderosa atração pelo sagrado foi um dia testemunhado por sua mãe:
"Quando ele era criança, costumava se prostrar diante de uma reprodução da Cabeça de Cristo, de Donatello, que seus pais haviam colocado na sala de estar em frente à porta devido à sua beleza artistica. Uma vez, sua mãe abriu a porta e encontrou surpreendida seu filho em postura de adoração. Profundamente movida, gentilmente fechou a porta. Ela também era muito reverente para tentar mudar ou suprimir as inclinações espontâneas da alma de seu filho."(7)Estas quatro notas da personalidade de Hildebrand me parecem as mais relevantes para a compreensão de seus interesses filosóficos. Mostram um filósofo que, longe de se apartar da vida para filosofar, se imerge na vida e em tudo aquilo que nela há de mais nobre e digno da resposta humana. Por isso, pode-se dizer acertadamente que sua vida inteira pode ser resumida por três palavras, que também foram o centro de sua produção filosófica: o amor, a verdade e a beleza. Valores para os quais vale a pena viver e pelos quais vale a pena dar a vida.
Notas:
(1) VON HILDEBRAND, Alice. The Soul of a Lion: Dietrich Von Hildebrand: a Biography. Ignatius Press, 2000. Pagina 50.
(2) Ver "Amor entre homem e mulher. Um estudo filosófico-teológico" de Dietrich Von Hildebrand, bem como sobre a dignidade feminina o livro escrito por sua esposa, Alice, intitulado "O privilégio de ser mulher", editado no Brasil pela Ecclesiae. Interessante também é observar o crescente respeito que, sobretudo após sua conversão, Dietrich adquiriu em relação à esfera sexual. Há episódios curiosos sobre sua vida neste sentido. Não um puritanismo, mas uma reverência diante da sacralidade da sexualidade e da pureza, que é pressuposto para a vivência reta da sexualidade, já estão no menino desde cedo, quando por exemplo recusa o convite do pai para contemplar o "corpo de Vênus" de uma mulher que seria modelo de uma escultura de seu pai. Mas os exemplos se multiplicam. Talvez possa tratar disto em outro texto.
(3) The soul of a lion( doravante TSL), p.59-60.
(4) TSL, p.56.
(5)Ibdem.
(6) Ibdem, p.58.
(7)Ibdem,Ibdem.
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